
Perversão ou narcisismo
Perversão ou narcisismo?
Seguindo a trilha freudiana, podemos dizer que o conceito definidor da perversão é verleugnung, ou seja, o desmentido que o sujeito opera sobre a angústia de castração. Como que a verleugnung aparece na cena social, possibilitando a nomeação da sociedade como perversa? Qual seria a consequência da verleugnung na relação com o outro?
As reflexões sociais que tangenciam a questão da perversão aparecem nos comentários sobre as formas de relações utilitárias do mundo contemporâneo. Nesse caso, não está em jogo a estrutura perversa, mas sim a cena perversa desenvolvida em uma sociedade de consumo, em uma cultura narcisista e do espetáculo. Podemos pensar em uma civilização da perversão em que a personalidade narcisista domina o campo social. Segundo Lasch (1983) "Novas formas sociais requerem novas formas de personalidade, novos modos de socialização, novos modos de se organizar a experiência" (p. 76). é uma sociedade que opera o enfraquecimento do vínculo social, na qual o sujeito tende a minimizar seu campo de investimento libidinal. Nesse sentido, presenciamos ações que revelam uma falta de pesar, uma superficialidade, uma promiscuidade sexual e uma "escolha" por exprimir os conflitos através da atuação (act out).
Do ponto de vista psicopatológico, não é possível igualar, de maneira simples, cultura do narcisismo e perversão, mas não se pode negar o componente perverso dessa forma de organização cultural. Acreditamos que os perversos sejam narcisistas, mas nem todo narcisista é perverso. Entretanto, o próprio conceito de narcisismo padece de uma imprecisão, pois podemos pensar narcisismo como represamento da libido no eu; característica presente em quase todas as formas psicopatológicas. Talvez, o elemento que aponte para uma diferença das modalidades narcísicas presente nos quadros psicopatológicos seja a relação com a problemática da alteridade.
Assim, uma reflexão da perversão sob a ótica da psicanálise, ou seja, considerando a questão metapsicológica e clínica, deve articular as noções de castração, narcisismo e alteridade. Em sua reflexão metapsicológica sobre a perversão, Freud revela que na base desse modo de subjetivação encontramos um desmentido (verleugnung) da castração. Interessante enfatizar que esse é o destino da ideia, o afeto teria outra vicissitude (Freud, 1927/1974). Assim, o desmentido opera sobre a ideia da castração, mas o quantum afetivo implicado nesse movimento parece tomar o destino da angústia. é o que parece sugerir no texto inacabado sobre A divisão do ego no processo de defesa. Freud (1938/1974) revela:.
[...] temos de retornar à nossa história clínica e acrescentar que o menino produziu ainda outro sintoma, leve embora, o qual ele reteve até o dia de hoje. Tratava-se de uma suscetibilidade ansiosa (ängstliche) contra o fato de qualquer de seus dedinhos do pé ser tocado, como se, em todo o vaivém entre rejeição e reconhecimento, fosse todavia a castração que encontrasse a expressão clara[...] (p. 312).
Parece que nesse texto inacabado, Freud pretende deixar uma pista para trilharmos na direção da perspectiva da presença da angústia na perversão, que aparece como uma sombra no movimento pendular do desmentido. Quanto à questão do narcisismo na perversão, parece-nos lugar comum trabalhar a perspectiva do represamento de libido no eu, assim optamos por pensar a relação do perverso com algumas figuras alteritárias. Dessa forma, trabalharemos o conceito de narcisismo e o articularemos com a problemática da alteridade.
Representante da libido do eu, o conceito de narcisismo é apresentado por Freud como uma fase do desenvolvimento do sujeito que se situa entre o autoerotismo e a escolha objetal. Podemos pensar que após a dispersão das pulsões parciais, o investimento libidinal em uma unidade denominada eu seria a definição de narcisismo primário.
O narcisismo primário apresentaria uma onipotência que se expressa através de uma instância ideal, um ego ideal, que se vê na posse de toda perfeição. Para Freud (1914/1974), o ego ideal "se acha possuído de toda perfeição de valor" (p. 111). O ego ideal inclina-se para uma idealização. Nessa instância, o ego seria idealizado e levado ao máximo de onipotência. Assim, o ego ideal tipifica o narcisismo primário. O ego ideal só pode assumir essa posição através do olhar do outro, é o outro que investe libidinalmente no eu, colocando-o em um lugar idealizado. é o outro que, através do jogo especular, possibilita a percepção do corpo como unidade.